No Território Indígena do Xingu, em evento em que o InfoAmazonia e o PlenaMata estiveram com exclusividade, a filha mais nova de Raoni Metuktire foi anunciada como sucessora. Enquanto isso, neste ano, 40 mulheres indígenas tentam vaga nas eleições pela Amazônia Legal.
O cacique Raoni Metuktire é líder Kayapó e, incontestavelmente, um dos mais reconhecidos do planeta, sendo cotado, inclusive, para o Nobel da Paz em 2020. Em maio deste ano, no Território Indígena do Xingu, surgiu um anúncio inédito: no futuro, a filha mais nova Kokonã Metuktire irá assumir o legado e o cargo do pai, hoje com 92 anos. Uma cacica mulher, portanto.
Devido à idade avançada de Raoni, o subgrupo Metuktire, chefiado atualmente pelo indígena, se reuniu para decidir a sucessão. A escolha rompe com a tradição: não existem registros recentes de cacicas entre os Metuktire. Agora, quando for o momento, a Terra Indígena Capoto Jarina, dos Kayapó, no Norte do Mato Grosso, será comandada por uma mulher.
Mãe de três filhos e avó de duas crianças, Kokonã tem 43 anos e mora na mesma aldeia que o pai, a Metuktire, uma das principais comunidades do Xingu. Segundo familiares ouvidos pelo InfoAmazonia e PlenaMata, ela despontou como líder ao interceder pelas demandas femininas no dia a dia e participar de mobilizações fora do território. “Seu nome é forte e só tem crescido”, comenta o jovem líder Kayapó Beptuk Metuktire, sobrinho de Kokonã.
Nos costumes Kayapó, a sucessão se dá entre pessoas da mesma linhagem, geralmente homens. Em 2021, outro ramo do povo, o Mẽbêngôkre, localizado no sul do Pará, já havia feito história inicialmente ao escolher uma jovem mulher, a assistente social O-é Kaiapó Paiakan, de 38 anos, para comandar o subgrupo. Ela é uma das filhas de outro lendário cacique, Paulinho Paiakan, morto em 2020 por Covid-19.
Os dois exemplos de sucessão feminina entre o povo Kayapó ilustram um fenômeno relativamente recente em terras indígenas no país: o aumento do protagonismo feminino. Esse movimento também se projeta para fora das aldeias, com a ascensão de lideranças em áreas urbanas lutando por posições estratégicas nos espaços de poder.
Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontam que neste ano as candidaturas femininas de povos originários cresceram 75% em relação às eleições gerais de 2018: em 2022, são 84 mulheres autodeclaradas indígenas participando da disputa em 24 estados e no Distrito Federal. Elas estão distribuídas em 26 partidos de diferentes correntes ideológicas e representam 46% do total (182) de candidaturas indígenas.
Cinquenta dessas mulheres pleiteiam vagas nas assembleias estaduais, sendo duas delas candidatas a deputadas distritais em Brasília. Outras 28 estão em campanha para representar seus estados na Câmara dos Deputados, na capital federal. Há ainda três candidatas a suplente de senador e duas a vice-governadora, uma pelo Amazonas e outra por Sergipe. Uma mulher indígena também disputa a vice-presidência da República: a maranhense Raquel Tremembé (PSTU), da chapa de Vera Lúcia, do mesmo partido.
Formiga brava
Quase 40 dessas candidaturas vêm da Amazônia Legal
É uma região que ocupa quase metade do território brasileiro, abrange 9 estados e tem área superior ao do bioma amazônico. É o caso de Vanda Ortega (Rede), do povo Witoto, do Amazonas. A técnica de enfermagem, que concorre a uma vaga de deputada federal, se tornou símbolo da luta contra a Covid-19 no estado ao prestar auxílio a 700 famílias indígenas ameaçadas pela pandemia. Ela foi a primeira amazonense vacinada contra o coronavírus no início de 2021, em Manaus.
No início da campanha, Witoto destacou a emoção de carregar pela primeira vez uma bandeira estampada com uma mulher indígena. A “formiga brava”, como se intitula, atribui o crescimento no número de lideranças femininas ao trabalho de base que muitas delas desenvolvem e participam em suas terras.
“Nos últimos 15 anos, as mulheres indígenas têm se envolvido em formações políticas em todos os níveis, buscando compreender seu papel nos territórios e atuando ativamente na defesa dos direitos do seu povo. Foi assim que nós percebemos que a ausência de políticas públicas para os indígenas está relacionada à falta de representantes nossos nos espaços onde são tomadas as decisões”, afirma.
Vanda explica ainda que essas candidaturas se colocam como uma estratégia de sobrevivência não só dos povos originários.
“Já está comprovado que nosso modo de pensar e de viver contribui para o equilíbrio climático do planeta. São os saberes ancestrais das populações indígenas que têm mantido essa Amazônia viva até aqui, apesar de a sociedade nacional nem sempre reconhecer nossos direitos e o direito de existir das florestas. São candidaturas fundamentais para as mudanças que o mundo tem buscado resposta”, disse.
Ela destaca ainda que o modo coletivo com que tradicionalmente os indígenas tomam suas decisões internas pode contribuir para um parlamento mais participativo. “Nós fazemos política há muito tempo e essa política é coletiva, de escuta, visando o bem comum a partir do território, do meio ambiente, da preservação e do cuidado com a floresta e os rios”.
Nós fazemos política há muito tempo e essa política é coletiva, de escuta, visando o bem comum a partir do território, do meio ambiente, da preservação e do cuidado com a floresta e os rios.
Vanda Ortega (Rede), candidata a deputada federalEmpoderamento indígena
Para o filósofo Márcio Santilli, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), a ascensão de lideranças femininas indígenas dentro e fora das aldeias vem na esteira do fortalecimento dos movimentos dos povos originários no Brasil ao longo dos anos. Ele explica que a luta organizada criou condições para o empoderamento e que isso se expressa na crescente participação a cada disputa eleitoral.
“Isso começa com o aprofundamento das relações de contato entre esses povos e a sociedade nacional nesse período democrático recente da nossa história. Porém, essa relação era praticamente monopolizada pelas lideranças masculinas. Nos tempos da constituinte, contavam-se nos dedos as mulheres indígenas que falavam português”, lembra.
Apresentação Kisêdjê durante o 5º encontro da Rede Xingu +, que reuniu representantes dos 25 povos indígenas e comunidades tradicionais da Bacia do Rio Xingu para defender seus direitos e territórios. O encontro aconteceu na Aldeia Khikatxi, do Povo Kisêdjê, do Território Indígena do Xingu
Apesar disso, o ex-presidente da Funai ressalta que as indígenas sempre tiveram seus modos tradicionais de expressarem as contradições em relação aos homens.
“Há situações em que as mulheres acabam se impondo na rotina da aldeia. Agora, politicamente, isso é algo novo e muito interessante porque se contrapõe à ideia de um machismo geral. Cacicas sendo ungidas, por exemplo, não é inédito, mas tem acontecido com cada vez mais frequência”.
Isso é algo novo e muito interessante porque se contrapõe à ideia de um machismo geral. Cacicas sendo ungidas, por exemplo, não é inédito, mas tem acontecido com cada vez mais frequência.
Márcio Santilli, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA)
O contexto de retrocessos nos direitos indígenas e nas políticas indigenistas e ambientais no Brasil durante o governo Jair Bolsonaro (PL), entre elas a tese do Marco Temporal e o Projeto de Lei que regulamenta a mineração em terras indígenas, também é um fator que, na visão de Santilli, impulsiona a participação dos povos originários no processo eleitoral atual — e que traz consigo um elemento novo: o aumento do apoio de não indígenas à causa.
“O empenho do presidente em promover esses retrocessos fez com que uma parcela importante da sociedade entendesse a questão indígena e seus territórios preservados como essenciais para qualquer estratégia nacional de enfrentamento das mudanças climáticas”, afirma Santilli.
“Parte da sociedade brasileira passa, então, a incorporar a causa indígena como uma de suas visões de país. E esse é um espaço que essas candidaturas buscam ocupar eleitoralmente. Estamos vendo candidatos indígenas pipocando em busca também desse voto urbano”, complementa.
Falta recurso, sobra preconceito
Vem do Mato Grosso outra importante liderança feminina indígena que entrou na disputa eleitoral para levar mais diversidade de gênero e raça ao Parlamento. Eliane Xunakalo (PT), do povo Bakairi, pós-graduada em Direito Administrativo é candidata a deputada estadual e tem como uma de suas bandeiras a defesa de um modelo econômico local que leve em conta os pequenos produtores e o meio ambiente.
“A gente vive em um estado campeão em produção de grãos, mas que não dá apoio devido às cadeias alternativas, como mandioca, mel e açaí. O Mato Grosso é enorme e seu povo é espelho dessa extensão. Não somos o estado do agro, mas, sim, da biodiversidade, que não tem espaço merecido nas casas políticas. Precisamos de uma rede que gere renda a todos. Venho de uma sociedade que vive a coletividade e entrei na política com esse espírito”.
Venho de uma sociedade que vive a coletividade e entrei na política com esse espírito.
Eliane Xunakalo (PT), candidata a deputada estadual
Eliane lamenta as dificuldades de uma candidatura feminina indígena, como a falta de recursos suficientes para a campanha, o preconceito e os ataques que vem sofrendo desde que seu povo a lançou na disputa, com o aval do cacique da Terra Indígena Santana, onde vivem os Bakairi.
“O Mato Grosso é um estado majoritariamente bolsonarista e a gente sabe que o presidente não gosta de mulher, então seus seguidores também vão adotar essa postura e pegar um pouco mais pesado com a gente. Já fui hostilizada na rua e existem pessoas que vão às minhas redes para falar muita coisa feia. Nossa candidatura é vulnerável, mas estamos tomando cuidados”.
Ela reforça que as candidaturas indígenas são respostas ao que chama de “política de extermínio” praticada pelo atual governo.
“A primeira canetada do Bolsonaro foi contra a gente, para tentar tirar a Funai do Ministério da Justiça. Extermínio não é só você pegar a metralhadora e atirar em todo mundo. Você se omitir na saúde e diminuir recursos da Funai também é uma forma de matar as pessoas aos poucos. Igual veneno. Coloca um pouquinho hoje, coloca um pouquinho amanhã e, de repente, você mata. É isso que ele está fazendo”.
Efeito Joênia Wapichana
Embora pertençam a povos, estados e partidos diferentes, as candidatas Eliane Xunakalo e Vanda Witoto têm algo em comum: ambas se inspiram na deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher indígena eleita para o cargo e única representante dos povos originários na atual legislatura da Câmara Federal, que conta com 513 cadeiras.
A deputada Joênia Wapichana, primeira mulher indígena eleita, durante sessão de posse dos Deputados Federais para a 56ª Legislatura.
A parlamentar, por sua vez, reforça o coro e afirma sonhar com um Parlamento composto por 30% de indígenas. “Eu creio que nós já estamos convencidos de que somos capazes. Há, sim, a possibilidade de a gente ter outros representantes, principalmente mulheres e jovens que acreditam na renovação política”, disse Joênia em entrevista à Rede TVT.
Para Márcio Santilli, o mandato da parlamentar roraimense encoraja outras mulheres indígenas a buscarem na política eletiva meios de transformação da sua realidade. “A participação da Sônia Guajajara nas eleições presidenciais de 2018 também contribuiu com esse efeito. Mas o caso da Joênia é mais exemplar pelo fato de ela ter exercido seu mandato”.
A prova do “efeito Joênia” é que Roraima foi o estado com maior número de candidaturas indígenas registradas pelo TSE, com 30 pleiteantes. Desse total, 14 são mulheres.
“A participação indígena no processo político, social e de comunicadores botando pra quebrar nas mídias e em várias frontes são, sem dúvidas, sinais dos tempos. Independente do resultado, o simples fato de haver disposição de participar já é muito positivo e sadio, e que vai nessa rota de a gente poder ter no futuro um Parlamento mais representativo. Cada cadeira é uma vitória retumbante, dada as dificuldades naturais disso”, explica Santilli.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.