Presidente do conselho de secretários estaduais de Saúde, Carlos Lula afirma que, depois de dez meses de gestão de Eduardo Pazuello (Saúde), boa parte do grupo perdeu a paciência com o ministro.
Ele diz que os sucessivos erros da pasta minam a credibilidade no general, que teve um começo elogiável.
Em entrevista à Folha, Lula classifica o atual cenário da pandemia como horroroso, afirma que todos estão esgotados e que o pior adversário no enfrentamento à Covid-19 é o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Secretário da gestão Flávio Dino (PCdoB-MA), Lula defende os estados na pandemia, diz que era inviável manter hospitais de campanha abertos e que o erro foi ter apostado em estruturas temporárias.
Como o senhor vê o atual momento da pandemia? Nunca senti o pessoal tão pra baixo [quanto agora]. É sentir que estamos perdendo a esperança. Não esperava chegar em março num colapso. Hoje tem 25 dos 27 estados em situação gravíssima. Não há certeza do cronograma do ministério, todo dia diminui um pouco o número planejado de doses. Está todo mundo muito esgotado. A gente olha pra frente e não sabe o que vai ser amanhã.
Por que não esperava chegar agora? Mesmo com alguns sinais, a gente tinha esperança. A gente achou que a vacinação poderia impactar. Isso não é segunda onda, é tsunami, isso é pororoca, é uma onda em cima da outra, uma onda gigante que engoliu todo mundo. O cenário é horroroso. A gente olhou em dezembro que isso poderia acontecer, mas a gente achou que ainda dava para virar. O cenário é o pior possível.
Os estados desfizeram seus hospitais de campanha. Vocês não se prepararam o suficiente para chegar nesse momento? Houve um erro na avaliação do que seria o hospital de campanha. No início da pandemia, quem não tinha era como se não tivesse enfrentado a doença. Era um erro sem tamanho. Sofri muitas críticas no meu estado por ter demorado a montar. Queria estruturas permanentes, não temporárias. Se não tiverem cheias, tem que desmontar. Não temos como manter a estrutura sem ocupação.
Mas o planejamento dos estados foi errado? Não foi errado. Foi certo. A gente desmontou porque não estavam sendo utilizados. Agora estamos tendo que reabrir. O grande erro foi apostar só em hospital de campanha. Hospitais de campanha não são solução. Só existe por causa da sobrecarga.
Por que não foi possível fazer estrutura permanente? Houve um equívoco dos estados nessa avaliação, talvez porque achavam que não seria tão rápido construir ou ampliar leitos.
Como é enfrentar o vírus com o presidente Jair Bolsonaro? Isso não estava no planejamento. Não estava no plano enfrentar um presidente que desafia as autoridades do seu governo. Estamos no terceiro ministro. Ele tentou enfrentar todas as autoridades sanitárias do país. Na ponta, o discurso cola. A gente combate o vírus e o sentimento da sociedade. Não foram poucos os que chegaram em unidades de saúde pedindo pra tomar cloroquina. Gente que fez escândalo. Ou que brigava porque não queria usar máscara. Essa guerra é maior do que a que a gente enfrenta. O presidente aposta na confusão. Isso nos cansa três ou quatro vezes mais. Ele poderia ter unificado o país, mas não quis fazer.
Essa foi a maior dificuldade? Com certeza. Porque essa é a mãe das outras dificuldades. Vacinação, financiamento adequado, critérios científicos para o que deve ser feito. Tudo isso deriva da posição pessoal do presidente.
Qual a avaliação que faz do ministro Pazuello depois de dez meses? Ele tem tentado acertar, mas tem errado muito. É aberto a escutar, é uma qualidade que não é fácil de se ver em quem é ministro. Por outro lado, se cercou de pessoas que não fazem seguir o melhor caminho. Ele erra e erra muito. Tem uma série de coisas que poderiam ter sido diferentes. De Manaus às vacinas. Não é só culpa dele. Ele tentou resolver a Coronavac lá atrás. O presidente não deixou. Ele começou bem, mas hoje eu diria pelos secretários que boa parte já perdeu a paciência. O ministério tem errado sucessivamente. São erros em sequência que minam a credibilidade.
Quais são os principais erros dele? O maior erro foi de ter se cercado de pessoas que não vão dizer a ele que está no caminho errado. As pessoas estão ali só pra aplaudir.
Se boa parte perdeu a paciência, por que ele fica? Ele fica porque é da confiança do presidente. E caso venha a sair, a gente se preocupa com quem vai estar depois dele. Pode piorar.
Logística não é a melhor qualidade dele? Ele conseguiu cumprir um pouco no começo. O erro na troca de [entregas de vacinas do] Amazonas para o Amapá, certamente não passou por ele, mas fica nas costas porque é o responsável final. É um erro primário. A responsabilidade política é dele.
Quem são essas pessoas que não são confiáveis? Prefiro não nominar. Mas tem muita gente do Exército. Pessoas sem experiência na área de saúde e saúde pública, não tem como prover resultados.
O senhor falou da cloroquina, qual foi o efeito do discurso do presidente? A consequência foi gente morrendo com problema cardíaco. Faleceram de Covid com arritmia. Não dá pra tratar prescrição de medicamento com achismo de autoridade pública. O discurso do presidente é muito fácil. De um lado, a gente fala: ‘olha, fica em casa, não tem vacina, não vamos ter leito pra você, fica em casa e se protege’. Do outro: ‘não, isso é besteira, não precisa ficar em casa, é só tomar um medicamento, que é mágico, e vai fazer você ficar bem’. É mais fácil as pessoas acreditarem em milagres. Depois da cloroquina, vem ivermectina, depois é um spray, ‘a gente tá indo pra Israel, nosso senhor Jesus Cristo, vai dar tudo certo, vamos meter um spray no seu nariz e vai resolver’. Qual é o problema nisso? É que é um discurso falso.
Há um movimento para o Congresso assumir a linha de frente do combate à pandemia e impedir o discurso negacionista do presidente. O senhor concorda? Isso é o federalismo em frangalhos. Na medida que vamos buscando alternativas, isso é apenas desespero. Se com ajuda do Congresso e governadores é possível apontar um caminho, a gente vai apostar nisso. Daqui a alguns anos alguém vai estudar o ofício do Arthur Lira [presidente da Câmara] para a China, em que ele diz que o país não é representado só por um Poder, pedindo desculpas praticamente. Tem coisa mais absurda do que isso?
O Brasil virou uma preocupação para o mundo inteiro. Como classifica essa situação? É uma vergonha e um absurdo. A variante de Manaus veio para acabar com a tese de imunidade de rebanho. Por isso não podemos circular livremente. Se acontecer uma mutação que seja resistente a vacina é o pior cenário possível.
O senhor falou dos erros do Pazuello. Ele é investigado agora. O senhor acha que ele cometeu crimes? Não conheço os casos a fundo. Diria que ele tem responsabilidade política. Em Manaus, acho que a responsabilidade maior é política. Quem tem que colocar o oxigênio lá é o estado. Teria que provar que ele teve intenção em se omitir.
Pazuello tem pedido ajuda a políticos por não conseguir agir. O senhor acredita no pedido? Acredito. O pedido é sincero. Ele pediu ajuda pra gente também. Ele pede ajuda na articulação política e também para medidas que ele não consegue tomar na esfera federal.
O ministério já manifestou que medidas restritivas são necessárias? Ele [Pazuello] entrou em contato na semana passada e disse que isso estava em debate. Antes não aceitavam falar no tema. Dessa vez, pela situação grave, disseram que achavam que tinha que tomar uma medida. Devem discutir isso no governo.
Qual a avaliação que faz do Conselho Federal de Medicina? A posição é muito ruim. A gente também defendeu autonomia para os médicos desde o começo. Isso não significa que se pode prescrever qualquer coisa. No começo, era crível alguém receitar cloroquina, mas a gente viu que não fazia sentido. A postura do CFM é ideológica. Eles estão apontando o caminho da política, não o da ciência.
Qual esperança que o senhor tem? Acredito piamente que vamos vencer, infelizmente com mais baixas do que a gente desejaria.
Fonte: Folha de SP