O CNJ quis blindar o sistema, mas, no meio do caminho, blindou a advocacia contra o próprio trabalho. Criou uma barreira invisível que isola os profissionais da Justiça em nome da segurança.
É preciso repensar. O direito à informação não pode matar o direito de petição. A segurança digital não pode suplantar a efetividade da jurisdição. E o Judiciário, por mais tecnológico que se torne, não pode esquecer que o advogado é — e sempre será — humano.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu apertar o cerco contra fraudes digitais. Inspirado por boas intenções — coibir o famigerado “golpe do falso advogado” — o órgão instituiu uma nova camada de autenticação nos sistemas eletrônicos do Judiciário, exigindo login multifatorial, autenticação via aplicativo e acesso restrito ao titular do certificado digital.
O resultado? Um colapso silencioso no coração da advocacia.
Nos grupos de advogados, o clima é de desespero. Escritórios de médio e grande porte, que dependem de estrutura compartilhada para cumprir dezenas de prazos diários, simplesmente pararam. Um profissional descreveu o caos de forma crua e precisa:
“Se eu tenho um computador que trabalha para um contencioso e várias pessoas usam o mesmo certificado, não pode mais. Se eu entro com o certificado e o Google Authenticator, ninguém mais consegue usar. Estou sem acessar o sistema, com prazos estourando. Estamos de mãos atadas.”
O que era para ser uma barreira contra criminosos acabou virando uma barreira contra advogados.
O golpe da boa intenção
Não há dúvida de que o CNJ agiu com base em um princípio legítimo: a segurança da informação. O problema é que, na ânsia de combater a fraude, criou-se uma “tecnocracia processual” que desconsidera a realidade da advocacia brasileira.
O artigo 133 da Constituição é claro: o advogado é indispensável à administração da justiça. Mas, neste momento, milhares de profissionais estão impedidos de exercer esse papel não por má-fé, e sim por uma política que ignora a diversidade de realidades nos escritórios — especialmente aqueles que lidam com contencioso em larga escala.
De um lado, o CNJ invoca a segurança cibernética. De outro, os advogados vivem o pesadelo da paralisia funcional. Entre a proteção e o colapso, prevaleceu o excesso de zelo.
Quando o remédio vira veneno jurídico
O Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e a própria Lei 11.419/2006 — que trata da informatização do processo judicial — determinam que a tecnologia deve facilitar, e não restringir, o acesso à Justiça.
Ao condicionar o peticionamento à posse física e exclusiva do certificado, a medida impõe uma limitação material ao exercício profissional. Em termos práticos, o advogado que se ausenta do escritório deixa toda a equipe impossibilitada de atuar. Os sistemas não reconhecem o procurador, o preposto, nem o estagiário autorizado: reconhecem apenas o token e o celular do titular.
Trata-se, em essência, de um obstáculo administrativo travestido de inovação. E isso afronta não apenas o direito ao exercício da profissão, mas o próprio princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), já que, sem acesso digital, não há petição, e sem petição, não há Justiça.
A advocacia refém do aplicativo
Nas últimas semanas, a rotina de escritórios transformou-se em uma sucessão de tentativas frustradas de login, códigos de verificação e telefonemas desesperados à OAB. A advocacia digital, antes símbolo de celeridade, virou refém de uma burocracia virtual que parece desconhecer a realidade fora de Brasília.
A ironia é cruel: o advogado que atua de forma ética, em equipe, dentro de um escritório regular, é quem paga o preço da desconfiança que deveria recair sobre os fraudadores.
Enquanto isso, o “falso advogado” que o CNJ tenta combater provavelmente não utiliza o PJe, não peticiona, não acessa o sistema — opera à margem, no anonimato, burlando o aparato digital que, paradoxalmente, agora sufoca quem trabalha de forma legítima.
A OAB precisa reagir — e rápido
O Conselho Federal da OAB já havia solicitado ao CNJ a adoção de medidas contra o golpe do falso advogado. Mas ninguém imaginava que a “solução” se transformaria em um bloqueio institucional da advocacia. Agora, é a própria OAB quem precisa agir para reequilibrar o jogo: o acesso seguro não pode significar o bloqueio funcional de milhares de profissionais.
A advocacia brasileira não pode ser tratada como suspeita por presunção. A confiança é um princípio basilar da função essencial à Justiça. Quando o Estado cria obstáculos desproporcionais ao exercício da profissão, rompe-se o equilíbrio entre segurança e liberdade profissional — e isso é grave.
Um alerta à magistratura e ao CNJ
A medida do CNJ é juridicamente legítima, mas institucionalmente desastrosa. O combate à fraude deve ser inteligente, não punitivo. O juiz, o servidor e o advogado precisam de segurança, sim, mas também de acesso funcional, agilidade e previsibilidade.
O Poder Judiciário não pode esquecer que tecnologia é meio, não fim. E que o excesso de formalismo digital pode gerar um efeito tão nocivo quanto a fraude que se buscava evitar.
Afinal, que tipo de segurança é essa que garante a integridade do sistema, mas impede o cidadão de ter seu processo peticionado no prazo?
